Autor: Ivanei de Almeida Alvim
Advogado com inscrição OAB/RJ 109.175
Pós Graduado em Processo Civil pela ESA - Escola Superior de Advocacia
1. BREVE HISTÓRICO DO ITBI
No Brasil, a transferência da propriedade imobiliária passou a sujeitar-se ao imposto da sisa (denominação utilizada para se referir ao ITBI), com a expedição do Alvará nº 3, de junho de 1809, que gravou em 10% as compras e vendas, arrematações e trocas de bens imóveis. Essa quota foi posteriormente rebaixada para 6%, em virtude da Lei de 28 de outubro de 1848.
A Constituição de 1891 (art. 9º, III) inaugurou constitucionalmente a previsão desse tributo, atribuindo a competência para sua instituição, arrecadação e fiscalização aos Estados da Federação.
A Constituição de 1934 promoveu a cisão do antigo imposto sobre a transmissão da propriedade, originando-se dele, então, dois impostos, a saber: (i) Imposto sobre a transmissão da propriedade imobiliária inter vivos (art. 8º, I, alínea c); e (ii) Imposto sobre a transmissão da propriedade causa mortis (art. 8º, I, alínea b).
As Constituições de 1937[1] e de 1946[2] mantiveram o mesmo texto da Carta de 1934, conservando, inclusive, a competência desses impostos no âmbito de atuação dos estados federados.
Com o passar do tempo e o amadurecimento do federalismo brasileiro, bem como em virtude da forte migração da população do campo para as cidades, passou a ocorrer, no Brasil, um crescente surgimento de novos municípios, através da emancipação de vilarejos e povoados, especialmente nas décadas de 50 e 60.
Dessa forma, os novos municípios, necessitados de receitas que garantissem sua autonomia administrativa e capacidade de atender às necessidades crescentes de serviços públicos nas zonas urbanas, passaram a pressionar a União, no sentido de auferir recursos tributários advindos do imposto de transmissão da propriedade inter vivos e causa mortis. Por outro lado, os Estados movimentavam-se em prol da manutenção do referido imposto em sua esfera de competência. A Emenda Complementar nº 65, de 1961, colocou termo à controvérsia, outorgando aos Municípios a competência tributária do imposto de transmissão de bens imóveis inter vivos[3] e mantendo a competência para o imposto de transmissão de bens imóveis causa mortis com os Estados[4].
Essa disputa, no entanto, não restou superada definitivamente, pois a Emenda Complementar nº 18, de 1965, devolveu aos Estados a competência tributária total do imposto de transmissão, promovendo uma velha novidade: a fusão dos impostos de transmissão causa mortis e inter vivos[5]. Vale ressaltar que, a essa época, em 25/10/1966, foi editada a Lei nº 5.172/1966 (Código Tributário Nacional – CTN).
A Constituição de 1967 e a Emenda Complementar nº 01/1969 não alteraram a essência normativa prevista no texto da EC nº 18/1965.
A Carta Magna de 1988, mais moderna e sensível às questões dos municípios, alterou a lógica do tributo novamente. Assim, foi atribuída aos Estados e ao Distrito Federal a competência para instituir impostos sobre doação e transmissão causa mortis de quaisquer bens e direitos (art.155, I); e aos Municípios a competência para a instituição do imposto incidente na transmissão de bens imóveis, bem como os direitos a eles relativos, a título oneroso e por ato entre vivos.
1.2. O ITBI NA LEGISLAÇÃO DOS MUNICÍPIOS
Como referido, a Constituição de 1988 outorgou aos municípios da federação a competência para instituição, fiscalização e cobrança do ITBI, como se extrai do disposto em seu artigo 156, II:
Art. 156. Compete aos Municípios instituir impostos sobre:
II – transmissão “inter vivos”, a qualquer título, por ato oneroso, de bens imóveis, por natureza ou por acessão física, e de direitos reais sobre imóveis, exceto os de garantia, bem como cessão de direitos à sua aquisição.
Assim sendo, a partir de 1988, os municípios começaram o trabalho de elaborar suas próprias leis instituindo o referido imposto e o fizeram basicamente repetindo os dispositivos que antes eram utilizados pelas leis estaduais antigas.
Antes da entrada em vigor da Carta Magna de 1988, o Supremo Tribunal Federal já havia se manifestado com relação ao momento da incidência do ITBI, para afastar a tese de que este imposto incidiria no momento da realização do instrumento, público ou particular, hábil para a transmissão da propriedade. Vejamos trecho da decisão relatada pelo Min. Otávio Galloti:
"O Estado-fiscal foi violento com o contribuinte in fieri, obrigando-o a pagar um imposto, não na época da situação jurídica definitivamente constituída mas, antecipando-se sideralmente dela, e aproximando-se umbelicalmente àquela em que a anterior situação jurídica não pode ser considerada fato gerador do imposto de transmissão de bem imóvel inter vivos, porque simplesmente transmissão não é.”[6]
No entanto, mesmo diante do posicionamento consolidado do Supremo Tribunal Federal quanto ao efetivo momento da incidência do ITBI, a legislação de alguns dos principais municípios da federação continuou exigindo esse tributo em momento anterior ao da ocorrência efetiva de seu fato gerador.
A Lei Municipal nº 1.364, de 1988, editada pelo Município do Rio de Janeiro, reproduziu, em seu artigo 20, a redação do artigo 89 do Decreto-Lei nº 5, de 1975, do Estado do Rio de Janeiro, que tratava do momento do pagamento do ITBI e que, como visto acima, já havia sido questionado constitucionalmente perante o STF. Vejamos:
Decreto-Lei nº 05/1975
Art. 89. O Imposto será pago antes da realização do ato ou da lavratura do instrumento, público ou particular, que configurar a obrigação de pagá-lo, com exceção dos casos adiantes especificados, cujos prazos para pagamento são os seguintes:
Lei nº 1.364/1988
Art. 20. O imposto será pago antes da realização do ato ou da lavratura do instrumento, público ou particular, que configurar a obrigação de pagá-lo, exceto nos seguintes casos:
Observa-se que, mesmo diante da manifestação expressa do STF, no sentido de determinar que a antecipação do fato gerador realizada pela lei estadual do Rio de Janeiro era inconstitucional, o Município do Rio de Janeiro copiou aquela mesma redação inconstitucional para, na prática, continuar com a cobrança do referido tributo em momento anterior à ocorrência efetiva do fato gerador.
Com efeito, e mais recentemente, ambas as turmas de direito público do Superior Tribunal de Justiça consolidaram o entendimento de somente ser cabível a cobrança do Imposto sobre a Transmissão Inter Vivos de Bens Imóveis, após o registro do título hábil à transmissão, no Cartório de Registro de Imóveis, momento em que de fato ocorre a transmissão da propriedade.[7]
Não obstante, o Município de São Paulo também adotou a prática de exigir o ITBI antes da lavratura do instrumento, público ou particular, hábil à transmissão da propriedade. Vejamos:
Decreto nº 46.228/2005
Art. 15. Ressalvado o disposto nos artigos seguintes, o imposto será pago antes de se efetivar o ato ou contrato sobre o qual incide, se por instrumento público e, no prazo de 10 (dez) dias de sua data, se por instrumento particular.
Da mesma forma, o Município de Niterói:
Lei nº 729/1988
Art. 18 – imposto será pago antes da realização do ato da lavratura do instrumento, público ou particular, que configurar a obrigação de pagá-lo, exceto nos seguintes casos:
Pode-se depreender que, mesmo diante de reiteradas decisões a respeito da impossibilidade de se antecipar o fato gerador do ITBI para o momento da realização dos negócios tendentes à transmissão da propriedade, os principais municípios do país continuam a proceder dessa forma, em uma tentativa inadequada de garantir a arrecadação de receitas.
O próprio ordenamento jurídico brasileiro, ao conferir eficácia constitutiva de direito real de propriedade somente ao título registrado, já obriga o indivíduo a realizar a transcrição do referido título, sob pena de, dentre diversas outras consequências, não se constituir em efetivo proprietário do bem.
Há, entretanto, municípios da federação que, através de recentes alterações nas suas leis que regulamentam o ITBI, já manifestaram aderência à posição unânime de nossos tribunais superiores.
Veja-se, a propósito, a Lei nº 5.492/1988, com as alterações da Lei nº 9.532/2008, do Município de Belo Horizonte:
Art. 2º - O Imposto sobre a Transmissão de Bens Imóveis por Ato Oneroso “Inter Vivos” – ITBI – tem como fato gerador:
§ 1º - O fato gerador ocorre com o registro do título translativo de propriedade do bem imóvel, ou de direito real a ele relativo, exceto os de garantia, na sua respectiva matrícula imobiliária perante o ofício de registro de imóveis competente. (grifos nosso)
Cumpre ressaltar que a inserção do §7º ao artigo 150 da Constituição da República, realizada pela Emenda Constitucional nº 3/1993, trouxe nova controvérsia doutrinária e normativa, por supostamente possibilitar a antecipação da ocorrência do fato gerador do ITBI.
Nesse sentido, a Lei nº 9.532/2008 modificou também o artigo 9º da Lei nº 5.492/1988, para prever a supracitada antecipação. Ipsis Litteris:
Art. 9º - O Imposto será pago antes do registro do título translativo de propriedade do bem imóvel, ou de direito real a ele relativo, no ofício de registro de imóveis competente, de acordo com o §7º do art. 150 da Constituição da República, mediante documento próprio previsto em regulamento, a ser fornecido pelo órgão fazendário competente, observando-se os seguintes prazos: (grifos nossos)
Ocorre que o supracitado dispositivo constitucional, inserido através da manifestação de constituinte derivado, não é aplicável ao Imposto sobre Transmissão de Bens Imóveis, razão pela qual esta antecipação defendida por parte da doutrina brasileira e prevista em normas municipais é inválida.
1.3. O § 7º DO ARTIGO 150 DA CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA
A origem do § 7º do art.150 da Constituição de 1988 está vinculada à longa discussão doutrinária e jurisprudencial que foi travada no âmbito da incidência do ICMS, a partir do estabelecimento da chamada substituição para a frente, no bojo do finado Convênio nº 66/88, e especialmente no ciclo econômico dos veículos automotores, com a exigência, na saída dos bens das montadoras, do recolhimento do tributo que seria devido apenas quando da sua venda final pelas concessionárias.
Assim sendo, e provavelmente com o intuito de constitucionalizar a exigência, foi promulgada a Emenda Constitucional nº 3/1993, que acrescentou ao artigo 150 o § 7º. In Litteris:
§ 7º - A lei poderá atribuir a sujeito passivo de obrigação tributária a condição de responsável pelo pagamento de imposto ou contribuição, cujo fato gerador deva ocorrer posteriormente, assegurada a imediata e preferencial restituição da quantia paga, caso não se realize o fato gerador presumido.
Logo após o surgimento do preceito acima transcrito, inúmeras manifestações doutrinárias vieram a lume, com o fito de denunciar várias “inconstitucionalidades” que maculariam o dispositivo. Não é esse certamente o foro adequado para debater a questão da constitucionalidade do preceito, mas há de se evidenciar que a inclusão deste dispositivo na Carta de 1988 inaugurou novo capítulo na discussão acerca do momento correto de cobrança do ITBI.
Isso porque se passou a afirmar que este novo dispositivo poderia ser utilizado para legitimar constitucionalmente a antecipação do fato gerador do ITBI, para exigi-lo no momento da realização dos negócios tendentes à transmissão da propriedade.
Data vênia, não é possível corroborar esta tese, por razões das mais óbvias.
Mesmo se ignorado o contexto histórico da inserção deste dispositivo na Constituição, qual seja, o da legitimação constitucional da substituição para a frente no âmbito dos tributos plurifásicos, a própria redação do dispositivo afasta qualquer tentativa de aplicá-lo ao sistema do ITBI.
A identificação do sujeito passivo da obrigação tributária ocorre a partir da análise do fato gerador da respectiva obrigação. Vale dizer, é a partir do surgimento da obrigação tributária que se pode buscar o sujeito passivo dessa mesma obrigação, podendo este ser classificado como contribuinte ou responsável.
Ora, quando o dispositivo afirma que “poderá ser atribuído a sujeito passivo de obrigação tributária a condição de responsável pelo pagamento de imposto ou contribuição”, não podem surgir dúvidas de que essa redação se refere apenas àqueles sujeitos passivos permanentes.
Tudo por que, no que diz respeito à incidência do ITBI, enquanto não houver efetivamente acontecido a transmissão da propriedade (com o registro do título) não terá ainda ocorrido o fato gerador da obrigação e, assim sendo, não será possível identificar o sujeito passivo. Muito menos poderá ser identificado um “responsável” pelo pagamento desse tributo, já que não há sequer um “contribuinte” configurado na hipótese.
O contribuinte do ITBI é sujeito passivo eventual, e somente será sujeito passivo deste tributo quando realizar a hipótese de incidência descrita na lei de incidência do citado imposto.
O mesmo não ocorre com o ICMS. O contribuinte deste imposto, pelas características específicas dessa espécie tributária, é sujeito passivo permanentemente, pois realiza frequentemente as atividades sujeitas à incidência desse tributo. Deve, inclusive, manter cadastro de contribuinte do ICMS junto à repartição fazendária do Estado em que está situado.
Da mesma forma, ainda no que diz respeito ao ICMS, podemos identificar com facilidade o “responsável” a que alude o dispositivo, uma vez que esse tributo é recolhido através de uma cadeia de operações subsequentes.
Percebe-se, assim, que a inserção do § 7º ao artigo 150 da Constituição da República não trouxe nenhuma modificação à lógica de cobrança do Imposto de Transmissão, simplesmente por não ser aplicável este dispositivo constitucional ao ITBI.
Enquanto não houver efetiva transmissão da propriedade, não terá ocorrido o fato gerador do Imposto de Transmissão Inter Vivos e, assim sendo, não haverá sujeito passivo desta obrigação. Também não haverá nenhum indivíduo a quem possa se atribuir a condição de responsável.
2. CONSEQUÊNCIAS NEGATIVAS DO ATUAL SISTEMA DE TRANSMISSÃO DA PROPRIEDADE IMOBILIÁRIA PARA A AUTONOMIA FINANCEIRA DOS MUNICÍPIOS.
2.l A TRANSMISSÃO DA PROPRIEDADE IMOBILIÁRIA NO DIREITO BRASILEIRO
Segundo as brilhantes lições dos Professores Cristiano Chaves de Farias e Nelson Rosenvald[8], a circulação de bens só se torna viável se houver a tutela do ordenamento jurídico no sentido de pacificar os conflitos de interesses, que se dão entre aquele que perde e aquele que adquire a propriedade, além da proteção dos interesses de terceiros, por evidentes razões de imputação de estabilidade ao tráfico negocial.
Assim, o primeiro passo para garantir a circulação jurídica de bens seria oferecer às partes o instrumento do contrato, para que a função econômica desejada pela autonomia dos protagonistas possa representar os interesses do ordenamento, oferecendo a eles a segurança na passagem do patrimônio.
Em linhas gerais, o Direito Brasileiro adota a teoria do título e do modo, em matéria de aquisição da propriedade. Sem registro, não se adquire, inter vivos, a propriedade do bem imóvel (art. 1245 do Código Civil)[9]. Não basta o título para gerar efeito translativo (exemplos: escritura pública, instrumento particular, carta de sentença e formal de partilha), pois determinante é o modo aquisitivo, ou seja, o registro.
Em nosso sistema, o título simplesmente serve de causa à futura aquisição da propriedade, pois nosso ordenamento jurídico, diversamente do francês, não reconhece força translativa aos contratos. É fundamental a intervenção estatal, realizada pelo oficial do Cartório Imobiliário. O modo de aquisição é o fato jurídico que vincula o direito de propriedade ao adquirente do título. O registro exerce dupla eficácia: constitui e publica o direito real.
O negócio jurídico ainda não registrado produz apenas um direito obrigacional, e obriga o outorgante a transferir a propriedade (obrigação de dar). Exemplificando: o contrato de compra e venda instrumentalizado em escritura pública, formalidade essencial quando o imóvel tem valor superior a trinta salários mínimos (art. 108 do CC), é apenas um título. Atendidos os requisitos do art. 104 do Código Civil, no campo da validade do negócio jurídico obrigacional, avançamos para a eficácia real do negócio jurídico, que demanda o registro. Ele completará a operação iniciada com o contrato, perfazendo verdadeiro ato complexo de formação progressiva, no qual o modo de transmissão sempre ficará condicionado à prévia existência do título (art. 1227 do CC)[10].
Ao recusar a concepção da constituição da propriedade pelo simples consenso, o sistema brasileiro deseja evidenciar que a autonomia privada, isoladamente, não produz efeitos aquisitivos no mundo dos direitos reais. O legislador quis prestigiar os princípios da segurança no tráfico jurídico e a tutela da confiança de terceiros, com a concessão de todas as consequências do nascimento do direito real, como a oponibilidade erga omnes, a sequela e o direito de preferência.
De fato, a chave para entender o registro está justamente em perceber a sua origem como verdadeiro negócio jurídico complexo, composto de duas fases: a obrigacional e a real. Com efeito, quando o transmitente outorga uma escritura de compra e venda, o beneficiário adquire um título, torna-se credor da obrigação de dar, mas não se converte ainda em proprietário. O título apenas lhe defere a posição de credor em uma relação obrigacional, nada obstante o adimplemento no plano do direito das coisas. Na dicção do artigo 481, do Código Civil:
“Pelo contrato de compra e venda, um dos contratantes se obriga a transferir o domínio de certa coisa, e o outro, a pagar-lhe certo preço em dinheiro”.
2.2 PROBLEMAS GERADOS PELO ATUAL MODELO.
O atual modelo de transmissão da propriedade imobiliária adotado pelo Direito Brasileiro produz, ao contrário do que pretendia o legislador, insegurança no tráfico jurídico e na tutela de terceiros, além de estimular a evasão fiscal do ITBI, penalizando os municípios brasileiros. Dentre as principais causas do fracasso do sistema adotado, destacam-se:
2.2.1 A BUROCRATIZAÇÃO DOS PROCEDIMENTOS DE REGISTRO IMOBILIÁRIO.
O relatório Doing Business (www.doingbusiness.org), uma publicação do Banco Mundial e da Corporação Financeira Internacional, compara a regulamentação em 178 economias. Este documento é utilizado para avaliar os regulamentos que têm impacto direto no crescimento econômico e para identificar reformas que possam gerar melhores políticas. Dentre vários indicadores, o relatório estuda o sistema de registro de propriedade nos países pesquisados. Os países que tornam o registro de propriedade simples, rápido e barato têm mais propriedades registradas formalmente, o que conduz ao maior acesso a financiamentos e a maiores oportunidades para investir. No ano de 2008, o Brasil ocupava o 110º lugar no relatório Doing Business; em 2009, o 116º; e em 2010, o 120º; ou seja, a burocracia nos procedimentos de registro imobiliário vem aumentando a cada ano, com o tempo de quarenta e dois dias e de doze procedimentos, em média, para uma empresa adquirir e transferir um título de propriedade de imóvel.
2.2.2 A GRANDE MAIORIA DOS IMÓVEIS DO PAÍS ENCONTRA-SE IRREGULAR.
A burocratização dos procedimentos e o elevado preço dos registros fazem com que ocorra a “transferência” da propriedade sem a observância dos requisitos exigidos pela legislação civil, com a conhecida prática de negociação do imóvel apenas com o recibo de compra e venda.
Para se ter uma idéia da gravidade desse fato, elencamos a situação de alguns municípios: em Cubatão, estima-se que 80% dos imóveis estejam irregulares; em Osasco, 70%; em Campina Grande, 70%; em Sorocaba, 40%[11]. Como se esperar segurança jurídica e tutela de interesse de terceiros com o atual modelo?
Ora, considerando que o nosso sistema exige, de forma clara e objetiva, o registro do título para a efetiva transferência da propriedade, todas as prerrogativas inerentes aos proprietários ficam amplamente mitigadas, caso o adquirente do bem não leve seu título a registro.
Se pensarmos, por exemplo, no jus fruendi, vamos verificar que há uma grande limitação desta faculdade. Isso porque se o adquirente quiser auferir frutos civis com seu imóvel (alugando o imóvel, por exemplo) verá pesar contra si o princípio da continuidade dos registros públicos, que impedirá que o locatário possa vir a transcrever o contrato no RGI e garantir, assim, a cláusula de vigência ou o direito de preferência, com eficácia erga omnes. Também, em razão do referido princípio afirmar que não deve haver registro isolado, devendo este manter uma efetiva conexão com os diversos negócios jurídicos que o precederam. Ficaria mitigado, então, o interesse de terceiros em alugar o referido imóvel, se lhes fosse proibido assegurar a cláusula de vigência e o direito de preferência.
Outrossim, verificamos que, pelo mesmo princípio registral, o direito de dispor fica seriamente abalado. Como se sabe, pode-se dispor total ou parcialmente de um bem. Sendo a disposição parcial aquela que ocorre quando se instituem ônus reais sobre o bem, e sendo o registro no cartório estritamente necessário para a constituição de ônus reais, percebe-se, com facilidade, que o não proprietário não poderá gravar o seu bem.
O jus disponendi total, ou seja, o ato de alienação do bem, também encontrará sérios problemas. Se o negócio jurídico de compra e venda que não se leva a registro produz apenas efeitos obrigacionais, não podendo ser oposto contra terceiros de boa- fé, não haverá a menor segurança de que esse negócio seja respeitado e de que a propriedade possa se consolidar, se aquele que pretende vender não consta como proprietário no cartório registral. O possível comprador do bem teria que reconstituir toda a cadeia de transmissão do imóvel, através de sucessivos registros, para que pudesse, então, registrar o seu título e se consolidar como proprietário. Não é necessário muito esforço para perceber que todo esse trabalho pode retirar o interesse pelo negócio.
Finalmente, percebemos que também o atributo de reivindicar o bem de quem injustamente o possua não fica incólume. Se o direito de propriedade se liga à relação que se forma entre o proprietário e a comunidade, sendo essa relação consubstanciada no dever geral de abstenção que todos devem observar, fica evidente que aquele que não possui título registrado não pode esperar que todo o ordenamento tenha ciência de um negócio que ele mesmo não tornou público.
Não será ele, portanto, legitimado para propor ação reivindicatória, típica medida daquele que é proprietário; apenas lhe restarão as ações possessórias, que cabem, afinal, até para aqueles que nunca possuíram qualquer título.
Deve-se observar que até as ações possessórias ficam mitigadas, já que, nas lições de Cristiano Chaves e Nelson Rosenvard[12], a noção ampla de posse injusta a que alude o caput do artigo 1.228[13] do Código Civil não corresponde ao conceito estrito de posse injusta espelhado no artigo 1.200[14] do mesmo estatuto (posse violenta, clandestina ou precária).
Para exemplificar: se A ingressar em terreno de B, à luz do dia, sem utilização de força ou violação a qualquer relação contratual, não poderá ser sujeito passivo em ação possessória, pois não praticou esbulho. Considerando que também não será possível utilizar ação reivindicatória, já que não houve registro do título, o adquirente daquele bem ficará seriamente limitado para efetivamente proteger o bem da intervenção de terceiros.
Percebemos que as faculdades de fruir, dispor e reivindicar ficam amplamente diminuídas se não houver registro do título. Até mesmo a simples faculdade de usar o bem só existirá até o momento em que o real proprietário, vale dizer, aquele que consta no RGI como o titular do bem, resolver transferi-lo e o adquirente realizar o registro, tornando-se efetivamente o novo proprietário do mesmo.
Por derradeiro, cumpre ressaltar que não se pretende, neste trabalho, esgotar todas as consequências jurídicas da falta do registro do título tendente à transmissão da propriedade. Essas são inúmeras, já que os registros públicos se inserem em nosso ordenamento de forma sistemática, produzindo diversos efeitos os atos que ali são averbados.
Fica claro, no entanto, que, longe de prestigiar os princípios da segurança no tráfico jurídico e a tutela da confiança de terceiros, o ato de registro como modo aquisitivo da propriedade, em nosso país, se configura como fonte de incertezas e de insegurança jurídica.
2.2.3 A RESTRIÇÃO DA INCIDÊNCIA DO ITBI AO MOMENTO DO REGISTRO DO TÍTULO ESVAZIA A EFETIVIDADE DA ARRECADAÇÃO MUNICIPAL.
A Constituição de 1988 incluiu os municípios no conceito de nossa Federação. O art.1º declara que a República Federativa do Brasil é formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal. O art. 18 estatui que a organização político-administrativa da República Federativa do Brasil compreende a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios, todos autônomos nos termos da Constituição. Sendo assim, o Município Brasileiro é entidade estatal integrante da Federação, como entidade político-administrativa, dotada de autonomia política, administrativa e financeira. Esta última compreende a capacidade do Município de decretação de seus tributos e aplicação de suas rendas, que são características da auto-administração.
O atual modelo de transmissão da propriedade imobiliária, além de gerar insegurança jurídica, por causa de sua burocracia e de estimular a não regularização dos imóveis, afeta a efetividade da arrecadação municipal, pois estimula a evasão da arrecadação do ITBI pela prática de “transferir” a propriedade do imóvel sem o registro do mesmo. Assim, tornaram-se frequentes no país sucessivas “transmissões” de bens imóveis sem o devido registro e, consequentemente, sem o pagamento do ITBI.
3. PROPOSTA DE SOLUÇÃO PARA OS PROBLEMAS GERADOS PELO ATUAL MODELO DE TRANSMISSÃO DA PROPRIEDADE IMOBILIÁRIA.
A raiz da insegurança jurídica e da irregularidade dos imóveis, no Brasil, tendo como uma de suas consequências a evasão da arrecadação do ITBI, está no modelo de aquisição da propriedade imobiliária adotado pelo Direto Brasileiro, que pretendeu prestigiar os princípios da segurança do tráfico jurídico e da tutela da confiança de terceiros, princípios esses que, como já foi visto, não se concretizaram na prática.
Países como a França, a Itália e Portugal utilizam um outro tipo de sistema de aquisição da propriedade imobiliária que tem demonstrado ser muito mais eficaz do que o adotado em nosso país. Em Portugal, o registro da propriedade possui apenas seis procedimentos e é realizado em seis dias[15].
O referido modelo encontra-se disposto no art.711 do Código Civil Francês:
“A propriedade dos bens se adquire e se transforma por sucessão, por doação entre vivos ou testamentária e pelo efeito das obrigações”.
Nesse sistema, tem relevância a validade da causa de que se originou a transação. Não há, como em outros ordenamentos, a abstração da causa. A transcrição do título visa mais a oposição do título frente a terceiros, sem revestir-se do caráter de uma presunção juris et de jure.
CLOVIS DO COUTO E SILVA[16] explica que, no negócio jurídico da compra e venda, existem duas declarações de vontade: aquela que cria as obrigações para as partes; e uma segunda, denominada negócio jurídico dispositivo, destinada ao cumprimento da obrigação, pois implica a perda do direito de propriedade e é resolvida no mundo do direito das coisas. O ordenamento deve, assim, eximir o comprador do registro do título aquisitivo para adquirir a propriedade, visto que, quem vende um imóvel, por escritura pública, não necessitará de outro ato, ou de outra declaração de vontade, pois, na vontade de vender, está a vontade de transmitir, que por si só é suficiente para permitir a aquisição da propriedade, já na escritura de compra e venda.
O sistema proposto prestigia a autonomia privada, concedendo imediato acesso ao direito de propriedade em favor do contratante, sendo bastante o consentimento das partes, sem nenhum ato externo.
4. CONCLUSÃO
Concluindo, com o propósito de dar maior segurança e celeridade aos negócios jurídicos, bem como de estimular a regularização dos imóveis no Brasil e, como consequência, tornar efetiva a arrecadação do ITBI, sugerimos as seguintes alterações na legislação brasileira:
A.1 – ALTERAÇÕES NO CÓDIGO CIVIL.
Os artigos 1227 e 1245 passam a ter as seguintes redações:
Art.1227 – Os direitos reais sobre imóveis constituídos, ou transmitidos por atos entre vivos, só podem ser opostos contra terceiros com o registro no Cartório de Registro de Imóveis dos referidos títulos, salvo os casos expressos neste Código.
Art. 1245 – A propriedade dos bens imóveis se adquire e se transforma por sucessão, por doação entre vivos ou testamentária e pelo efeito das obrigações.
§§ 1º e 2º devem ser revogados.
A.2 – ALTERAÇÃO DA LEI N° 6015, DE 31/12/1973.
O Art. 172 passa a ter a seguinte redação:
Art. 172 – No Registro de Imóveis, serão feitos, nos termos desta Lei, o registro e a averbação dos títulos ou atos constitutivos, declaratórios, translativos e extintivos de direitos reais sobre imóveis, reconhecidos em lei, inter vivos ou causa mortis, para sua validade em relação a terceiros.
Finalmente, é importante a participação do notário na transmissão da propriedade no modelo ora proposto, pois é ele quem possui a competência legal para lavrar as escrituras públicas. Dessa forma, o notário deve ter como responsabilidade informar, aos cadastros imobiliários das secretarias de fazendas municipais, a mudança de titularidade da propriedade toda vez que lavrar uma escritura pública. Trata-se de medida importante para a atualização dos cadastros municipais, bem como para a administração dos tributos.
[1] Art. 23, I, alíneas b e c.
[2] Art. 19, II e III.
[3] Art. 29, III.
[4] Art. 19, I e §§1º a 4º.
[5] Art. 9º, caput e §§ 1º a 4º.
[6] RP 1.121/GO. Rel. Min. Moreira Alves. J. 9/11/83 e RP 1.211/RJ. Rel. Min. Octávio Gallotti, J. 30/04/87.
[7] Resp. 12.546-0/RJ, rel. Min. Humberto Gomes de Barros. Out/92.
[8] Direitos Reais, Editora Lúmen Júris. 5ª Edição. Rio de Janeiro. 2008. p.236.
[9] Art.1245. Transfere-se entre vivos a propriedade mediante o registro do título translativo no Registro de Imóveis.
[10] Art.1.227. Os direitos reais sobre imóveis constituídos, ou transmitidos por ato entre vivos, só se adquirem com o registro no Cartório de Registro de Imóveis dos referidos títulos (arts. 1.245 a 1.247), salvo os casos expressos neste Código.
[11] Fonte - em 16/07/2010: http://www.anoreg.org.br/
[12] op. cit., p. 185.
[13] “Art. 1.228. O proprietário tem a faculdade de usar, gozar e dispor da coisa, e o direito de reavê-la do poder de quem quer que injustamente a possua ou detenha.”
[14] “Art. 1200. É justa a posse que não for violenta, clandestina ou precária.”
[15]Relatório Doing Business de 2010, http://www.doingbusiness.org, acesso em 16/07/2010.
[16] COUTO E SILVA, CLÓVIS DO. A Obrigação como Processo. São Paulo: Bushatsky, 1976, p. 62.