Elaborado em março de 2011
Geovane Basilio da Silva
- Auditor Tributário do Município do Jaboatão dos Guararapes/PE, atualmente na função de Julgador Tributário da Primeira Instância Administrativa
- Professor da Faculdade Metropolitana da Grande Recife
- Graduado em Ciências Contábeis, pela UFPE
- Pós-Graduado em Direito Tributário, pelo Instituto Brasileiro de Estudos Tributários – IBET
- Pós-Graduado em Contabilidade e Controladoria de Entidades da Administração Pública, pela UFPE
- Críticas e sugestões, encaminhar para o endereço eletrônico: Este endereço de email está sendo protegido de spambots. Você precisa do JavaScript ativado para vê-lo.
1. Introdução
A elaboração deste artigo teve como motivação minha palestra apresentada no III Simpósio de Direito Tributario Municipal, ocorrido na Cidade de Campinas, nos dias 23 e 24 de março de 2010, realizado pela Tributo Municipal (www.tributomunicipal.com.br), revista eletrônica voltada para a tributação municipal, que tem à frente os Professores Omar Augusto Leite Melo e Francisco Ramos Mangieri, dois renomados estudiosos do direito tributário, com ênfase na esfera municipal, os quais já se tornaram referência nessa matéria, em âmbito nacional.
Aliás, novamente quero agradecer aos Professores Omar Augusto Leite Melo e Francisco Ramos Mangieri, pelo convite para me apresentar no Simpósio, diante de diversos profissionais do Direito Tributario Municipal, de cidades que representavam, no seu conjunto, 18 (dezoito) Estados brasileiros, demonstrando com isso, além da importancia que vem tomando corpo os assuntos tributarios municipais, o grande sucesso que vem assumindo a Revista Eletrônica Tributo Municipal, acerca da tributação dos Municipios, ainda bastante carentes, comparado aos estudos promovidos em relação à tributação da União e dos Estados.
O tema de minha apresentação foi acerca da tributação fixa para as sociedades uniprofissionais, assunto que, segundo muitos, tanto na Doutrina, como na Jurisprudencia do Superior Tribunal de Justiça – STJ, estaria pacificado, em prol das sociedades. Ou seja, a tributação favorecida, aplicada por profissional, de forma fixa, nos termos dos §§ 1º e 3º, do art. 9º do Decreto-lei nº 406, de 31 de dezembro de 1968 – DL 406/68, estaria em pleno vigor.
Entretanto, não é o que penso e já me manifestei acerca deste assunto, em artigo recentemente publicado nas Revistas Eletrônicas Tributo Municipal[[1]] e FISCOSoft[[2]], em que defendi a revogação do § 3º do art. 9º do DL 406/68.
No simpósio, minha opinião, acerca desse assunto, teve como embasamento dois aspectos básicos:
1º) a revogação do § 3º do art. 9º do DL 406/68, tendo como motivação legal o que dispõe o Decreto-lei nº 4.657, de 4 de setembro de 1942 – Lei de Introdução ao Código Civil Brasileiro – LICC, tomando por base o art. 2º e §§. Este argumento, entretanto, como já mencionei, já o tratei em recente artigo e, por isso, não será objeto deste trabalho; e
2º) a inconstitucionalidade do DL 406/68, em face das Constituições de 1967, 1969 e 1988, assunto que passo a discorrer a seguir, e até como forma de manter a minha postura, em termos de contribuir para a evolução do direito tributário, notadamente o municipal, área de minha atuação profissional, na Prefeitura do Jaboatão dos Guararapes, cidade da Região Metropolitana do Recife/PE, na função atual de Julgador Tributario da Primeira Instancia Administrativa.
2. Aspectos gerais acerca do tema
Anteriormente ao advento da Lei Complementar Federal nº 116, de 31 de julho de 2003 – LC 116/03, a regulamentação do imposto sobre serviços de qualquer natureza – ISSQN, coube, de inicio, à Lei Federal nº 5.172, de 25 de outubro de 1966 – Código Tributario Nacional – CTN, arts. 71 ao 73 e, logo a seguir, ao Decreto-lei nº 406, de 31 de dezembro de 1968 – DL 406/68, arts. 8º ao 12, posto que, nos art. 1º ao 7º tínhamos o estabelecimento de normas gerais relativas ao imposto sobre circulação de mercadorias – ICM, hoje, com novas nomenclatura e hipóteses incidência, denominado de imposto sobre operações relativas à circulação de mercadorias e sobre prestações de serviços de transporte interestadual e intermunicipal e de comunicação – ICMS, nos termos do art. 155, II da Constituição Federal de 1988 – CF/88.
No DL 406/68, atualizado, em relação ao ISSQN, por meio do Decreto-lei nº 834, de 8 de setembro de 1969 – DL 834/69, da Lei Federal nº 7.192, de 5 de junho de 1984 e das leis complementares nº 22, de 9 de dezembro de 1974 – LC 22/74, nº 56, de 15 de dezembro de 1987 – LC 56/87 e nº 100, de 22 de dezembro de 1999 – LC 100/99, tínhamos a base para que os Municipios pudessem, por meio de suas leis ordinárias, estabelecer a instituição, regulamentação e cobrança do imposto, em praticamente todos os aspectos da regra-matriz de incidência. Senão, vejamos:
a) no art. 8º, as hipóteses de incidência, ou seja, a composição do aspecto material, todos descritos na lista anexa ao referido diploma:
Art. 8º O impôsto de competência dos Municípios, sôbre serviços de qualquer natureza, tem como fato gerador a prestação, por emprêsa ou profissional autônomo, com ou sem estabelecimento fixo, de serviço constante da lista anexa.
§ 1º Os serviços incluídos na lista ficam sujeitos apenas ao impôsto previsto neste artigo, ainda que sua prestação envolva fornecimento de mercadoria.
§ 2º O fornecimento de mercadoria com prestação de serviços não especificados na lista fica sujeito ao impôsto sobre circulação de mercadorias.
b) no art. 9º, o aspecto quantitativo, no subaspecto, base de cálculo:
Art. 9º A base de cálculo do imposto é o preço do serviço.
§ 1º Quando se tratar de prestação de serviços sob a forma de trabalho pessoal do próprio contribuinte, o impôsto será calculado, por meio de alíquotas fixas ou variáveis, em função da natureza do serviço ou de outros fatores pertinentes, nestes não compreendida a importância paga a título de remuneração do próprio trabalho.
§ 2º Na prestação dos serviços a que se referem a que se referem os itens 19 e 20 da lista anexa, o impôsto será calculado sobre o preço deduzido das parcelas correspondentes:
a) ao valor dos materiais fornecidos pelo prestador dos serviços;
b) ao valor das subempreitadas já tributadas pelo imposto.
§ 3º Quando os serviços a que se referem os itens 1, 4, 8, 25, 52, 88, 89, 90, 91 e 92 da lista anexa forem prestados por sociedades, estas ficarão sujeitas ao imposto na forma do § 1º, calculado em relação a cada profissional habilitado, sócio, empregado ou não, que preste serviços em nome da sociedade, embora assumindo responsabilidade pessoal, nos termos da lei aplicável.
§ 4º Na prestação do serviço a que se refere o item 101 da Lista Anexa, o imposto é calculado sobre a parcela do preço correspondente à proporção direta da parcela da extensão da rodovia explorada, no território do Município, ou da metade da extensão de ponte que uma dois Municípios.
§ 5º A base de cálculo apurado nos termos do parágrafo anterior:
I – é reduzida, nos Municípios onde não haja postos de cobrança de pedágio, para sessenta por cento do seu valor;
II – é acrescida, nos Municípios onde haja postos de cobrança de pedágio, do complemento necessário à sua integralidade, em relação à rodovia explorada.
§ 6º Para efeitos do disposto nos §§ 4º e 5º, considera-se rodovia explorada o trecho limitada pelos pontos eqüidistantes,entre cada posto de cobrança de pedágio, ou entre o mais próximo deles e o ponto inicial ou terminal da rodovia.
c) no art. 10, a definição do contribuinte do imposto, ou seja, o prestador dos serviços descritos na lista anexa, sendo, por isso, o sujeito passivo por excelência, compondo, juntamente com os municípios, o aspecto pessoal:
Art. 10 Contribuinte é o prestador do serviço.
Parágrafo único. Não são contribuintes os que prestem serviços em relação de emprêgo, os trabalhadores avulsos, os diretores e membros de conselhos consultivo ou fiscal de sociedades.
d) no art. 12, a definição do aspecto espacial da regra-matriz.
Art. 12. Considera-se local da prestação do serviço:
a) o do estabelecimento prestador ou, na falta de estabelecimento, o do domicilio do prestador;
b) no caso de construção civil o local onde se efetuar a prestação;
c) no caso do serviço a que se refere o item 101 da Lista Anexa, o Município em cujo território haja parcela da estrada explorada.
Com o advento do DL 406/68, foram revogados os artigos 71, 72 e 73 do CTN, que, desde a criação do ISSQN, por meio da Emenda Constitucional nº 18, de 1º de novembro de 1965 – EC 18/65, art. 15, fazia as vezes de legislação reguladora do tributo:
EC 18/65:
Art. 15. Compete aos Municipios o imposto sobre serviços de qualquer natureza, não compreendidos na competencia tributaria da União e dos Estados.
Parágrafo único. Lei complementar estabelecerá critérios para distinguir as atividades a que se refere este artigo das previstas no art. 12.[[3]]
Assim, com o advento do CTN, foram estabelecidos, além da exigencia prevista no parágrafo único do art. 15 da EC 18/65, outros aspectos que determinavam a parte mais importante da regra-matriz do imposto, quais sejam:
a) no art. 71, a hipótese de incidencia do imposto, determinante do aspecto material da regra-matriz de incidência:
Art. 71. O impôsto, de competência dos Municípios, sôbre serviços de qualquer natureza tem como fato gerador a prestação, por emprêsa ou profissional autônomo, com ou sem estabelecimento fixo, de serviço que não configure, por si só, fato gerador de impôsto de competência da União ou dos Estados.
§ 1º Para efeitos dêste artigo considera-se serviços:
I – locação de bens móveis;
II – locação de espaço em bens imóveis, a título de hospedagem ou para guarda de bens de qualquer natureza;
III – jogos e diversões públicas;
IV – beneficiamento, confecção, lavagem, tingimento, galvanoplastia, reparo, consêrto, restauração, acondicionamento, recondicionamento e operações similares, quando relacionadas com mercadorias não destinadas à produção industrial ou à comercialização.
V – execução, por administração ou empreitada, de obras hidráulica ou de construção civil, excluídas as contratadas com a União, Estados, Distrito Federal e Municípios, autarquias e empresas concessionárias de serviços públicos assim como as respectivas subempreitadas;
VI – as demais formas de fornecimento de trabalho, com ou sem utilização de máquinas, ferramentas ou veículos.
§ 2º Os serviços a que se refere o inciso IV do parágrafo anterior, quando acompanhado do fornecimento de mercadorias, serão considerados de caráter misto, para efeito de aplicação do disposto § 3º do art. 53, salvo se a prestação de serviço constituir seu objeto essencial e contribuir com mais de 75% (setenta e cinco por cento) da receita média mensal da atividade.
b) no art. 72, a determinação da base de cálculo do tributo, integrante do aspecto quantitativo da regra-matriz de incidencia, inclusive, com relação à tributação fixa para os profissionais autônomos;
Art. 72. A base de cálculo do imposto é o preço do serviço, salvo:
I – quando se trate de prestação de serviços sobre a forma de trabalho pessoal do próprio contribuinte, caso em que o imposto será calculado
c) no art. 73, a determinação do contribuinte do imposto, como sendo o prestador do serviço, integrante do aspecto pessoal.
Mas, como já informado, os artigos 71 a 73 do CTN foram expressamente revogados, por meio do art. 13 do DL 406/68:
DL 406/68:
Art. 13. Revogam-se os artigos 52, 53, 54, 55, 56, 57, 58, 71, 72 e 73 da Lei nº 5.172, de 25 de outubro de 1966, com suas modificações posteriores, bem como tôdas as demais disposições em contrário.
Bem, o DL 406/68 foi editado em 31 de dezembro de 1968, com publicação no mesmo dia, no Diário Oficial da União, para entrar em vigor em 1º de janeiro de 1969, conforme determinava seu art. 14 e, essa edição, teve como predecessora, a Constituição Federal de 1967 – CF/67, de 24 de janeiro de 1967, que continha em seu art. 25, a competencia dos Municipios para a instituição do ISSQN:
CF/67:
Art. 25 – Compete aos Municípios decretar impostos sobre:
(...)
II – serviços de qualquer natureza não compreendidos na competência tributária da União ou dos Estados, definidos em lei complementar.(grifei)
No art. 53 da referida Constituição, tínhamos o comando que conceituava o que vinha a ser, para o Constituinte de 1967, uma lei complementar:
CF/67:
Art. 53 – As leis complementares à Constituição serão votadas por maioria absoluta dos membros das duas Casas do Congresso Nacional, observados os demais termos da votação das leis ordinárias. (grifei)
E este conceito se repetiu na Emenda Constitucional nº 1, de 17 de outubro de 1969 – EC 1/69, que definiu, conforme muitos asseveram, uma nova Constituição, em 1969, conforme se pode verificar no texto do art. 50, verbis:
EC 1/69:
Art. 50. As leis complementares somente serão aprovadas, se obtiverem maioria absoluta dos votos dos membros das duas Casas do Congresso Nacional, observados os demais termos da votação das leis ordinárias. (grifei)
Analisando cada um dos Textos Constitucionais acima, penso que há a ausência de um aspecto, que considero fundamental para a validade constitucional do DL 406/68, como norma regulamentadora, pelo menos no que se refere ao ISSQN.
Ocorre que, formalmente, com base no que dispunha o art. 58 da CF/67, um decreto-lei, caso não fosse analisado, votado e aprovado, sem emendas, pelo Congresso Nacional, no prazo de 60 (sessenta) dias, transformava-se em uma norma com força de lei, apenas:
CF/67:
Art. 58 – O Presidente da República, em casos de urgência ou de interesse público relevante, e desde que não resulte aumento de despesa, poderá expedir decretos com força de lei sobre as seguintes matérias:
I – segurança nacional;
II – finanças públicas.
Parágrafo único – Publicado, o texto, que terá vigência imediata, o Congresso Nacional o aprovará ou rejeitará, dentro de sessenta dias, não podendo emendá-lo; se, nesse prazo não houver deliberação o texto será tido como aprovado. (grifei)
O termo “finanças públicas”, descrito no inciso II, apesar de, à época, poderem ser englobados assuntos ligados à tributação, não autorizava a edição de normas gerais de direito tributário, nem a definição de serviços, exigencias que estavam estabelecidas, expressamente, nos arts. 19, § 1º e 25, todos da CF/67:
CF/67:
Art. 19 – Lei complementar estabelecerá normas gerais de direito tributário, disporá sobre conflitos de competência tributária entre a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios, e regulará as limitações constitucionais do poder tributário.
(...)
Art. 25 – Compete aos Municípios decretar impostos sobre:
(...)
II – serviços de qualquer natureza não compreendidos na competência tributária da União ou dos Estados, definidos em lei complementar. (grifei)
E não se venha falar no chamado principio da recepção que, conforme ensina Paulo de Barros Carvalho[[4]], é o meio pelo qual se evita intensa e árdua movimentação dos órgãos legislativos para o implemento de normas jurídicas que já se encontram prontas e acabadas, irradiando sua eficácia em termos de compatibilidade plena com o teor dos novos preceitos constitucionais.
Veja-se que, conforme ensinamento do insigne professor, somente normas anteriores, de compatibilidade plena com os novos preceitos, poderão ser recepcionadas. Portanto, o principio da recepção somente pode ser utilizado para aquelas leis e regulamentos que não tenham vícios de inconstitucionalidades anteriores ao novo ordenamento jurídico, visto que, no Direito Brasileiro, não há a chamada constitucionalidade superveniente, conforme já reiteradamente decidido pelo Supremo Tribunal Federal – STF.
Não foi, por exemplo, o que ocorreu com o CTN que, mesmo não sendo formalmente uma lei complementar, quando da sua edição, em 25 de outubro de 1966, ainda se estava sob a égide da Constituição Federal de 1946 – CF/46 que, de acordo com o que determinava o seu art. 5º, XV, “b”, não havia a obrigatoriedade de legislação com quorum especial para a regulamentação de normas gerais de direito tributário:
CF/46:
Art. 5º - Compete à União:
(...)
XV – legislar sobre:
(...)
b) normas gerais de direito financeiro; de seguro e previdência social; de defesa e proteção da saúde; e de regime penitenciário;
E, mesmo com a edição da EC 18/65, que exigia, no parágrafo único do art. 15, que lei complementar estabelecesse critérios para a distinção das atividades que incidiriam o ISSQN, daquelas que iriam incidir o imposto previsto no art. 12, da mesma Emenda, ainda assim, não havia a possibilidade de invalidar o CTN, visto que, naquela emenda constitucional, também não havia o conceito constitucional de lei complementar, da mesma forma que na Constituição de 1946.
Assim, o CTN era, em verdade, válido e vigente, plenamente recepcionável pela Constituição de 1967, como o foi, também, pelas Constituições de 1969 e de 1988 e, portanto, não havia o vício incorporado ao DL 406/68.
O problema de formalidade estava, em verdade, apenas no período entre 31 de dezembro de 1968 e 31 de julho de 2003, ou seja, tão somente com o DL 406/68 que, de acordo com os arts. 19, § 1º e 25, II, ambos da CF/67, arts. 18, § 1º e 24, II, ambos da EC 1/69 e arts. 146, III e 156, III, ambos da CF/88, sempre foi exigido lei complementar, nos termos do que prescreviam os arts. 49, II e 53, ambos da CF/67, arts. 46, II e 50, ambos da EC 1/69 e arts. 59, II e 69, ambos da CF/88, isto é, somente lei complementar, esta, votada e aprovada por quórum especial de votos, ou seja, maioria absoluta, nas duas Casas do Congresso Nacional, poderia dispor sobre base de cálculo do imposto, definição dos serviços a serem taxados pelo ISSQN e definição de contribuinte.
Portanto, o DL 406/68, ao que me parece, NASCEU INCONSTITUCIONAL, pelo menos no que concerne ao ISSQN, posto que, todas as suas normas regulamentadoras eram, como ainda o são, exigidas por meio de lei complementar, desde a edição da Constituição Federal de 1967, passando pelo advento da EC 1/69 e, finalmente, da CF/88 e, desta forma, NÃO CABIA AO DL 406/68 REVOGAR QUAISQUER DISPOSITIVOS DO CTN, QUE JÁ HAVIA SIDO, ENTENDO EU, RECEPCIONADO MATERIALMENTE PELA CF/67, EC 1/69 E CF/88, SEMPRE COMO LEI COMPLEMENTAR.
Podemos ter uma ideia bastante clara, com a análise da decisão na ADI nº 02/DF, do STF, com relatoria do Ministro Paulo Brossard:
ADI nº 02-1/DF (Relator Min. Paulo Brossard)
“EMENTA: CONSTITUICÃO. LEI ANTERIOR QUE A CONTRARIE. REVOGACÃO. INCONSTITUCIONALIDADE SUPERVENIENTE. IMPOSSIBILIDADE. 1. A lei ou é constitucional ou não é lei. Lei inconstitucional é uma contradição em si. A lei é constitucional quando fiel a Constituição; inconstitucional na medida em que a desrespeita, dispondo sobre o que lhe era vedado. O vicio da inconstitucionalidade é congênito a lei e há de ser apurado em face da Constituição vigente ao tempo de sua elaboração. Lei anterior não pode ser inconstitucional em relação a Constituição superveniente; nem o legislador poderia infringir Constituição futura. A Constituição sobrevinda não torna inconstitucionais leis anteriores com ela conflitantes: revoga-as. Pelo fato de ser superior, a Constituição não deixa de produzir efeitos revogatórios. Seria ilógico que a lei fundamental, por ser suprema, não revogasse, ao ser promulgada, leis ordinárias. A lei maior valeria menos que a lei ordinária. 2. Reafirmação da antiga jurisprudência do STF, mais que cinqüentenária. 3. Ação direta de que se não conhece por impossibilidade jurídica do pedido.” (grifei)
As partes grifadas demonstram de forma bastante clara a impossibilidade de se validar ou constitucionalizar uma lei que já tinha nascido inconstitucional, ou seja, nem mesmo nasceu. Era “natimorta”, desde sua edição.
Mas, o leitor poderá gritar: “de acordo com nosso ordenamento jurídico, uma norma, mesmo que inválida, ela existe, até que outra a retire do ordenamento”. Sim, concordo. Entretanto, como vimos, a recepção do DL 406/68 foi indevida. Não apresenta respaldo em nosso ordenamento jurídico e, neste sentido, entendo que deve ser expurgado, pois, de acordo com o que foi aqui exposto, é uma lei “morta”, desde seu nascedouro.
Neste sentido, tomo a lição do Professor Tércio Sampaio Ferraz Jr.[[5]]:
Normas produzem efeitos. São dotadas de eficácia técnica. Esta capacidade de produzir efeitos, contudo, quando a norma não tem validade pode ser-lhe recusada desde o momento em que passaria a ter vigência, sendo-lhe a capacidade de produzir efeitos negada ex tunc (desde então). Fala-se, neste caso, de nulidade. Assim, por exemplo, uma lei aprovada e promulgada contra os ditames constitucionais diz-se nula no sentido de que seus efeitos são desconsiderados desde o momento em que começou a viger.
Mas, alguém poderá invocar, como o foi expressamente, no Simpósio, que o DL 406/68 tinha como fundamento o que dispunha o art. 2º, § 1º do Ato Institucional nº 5, de 13 de dezembro de 1968 – AI-5:
AI-5:
Art. 2º - O Presidente da República poderá decretar o recesso do Congresso Nacional, das Assembléias Legislativas e das Câmaras de Vereadores, por Ato Complementar, em estado de sitio ou fora dele, só voltando os mesmos a funcionar quando convocados pelo Presidente da República.
§ 1º - Decretado o recesso parlamentar, o Poder Executivo correspondente fica autorizado a legislar em todas as matérias e exercer as atribuições previstas nas Constituições ou na Lei Orgânica dos Municípios.
Ora, em primeiro lugar, o próprio AI-5 não alterou o que determinavam os arts. 49, II e 53, ambos da CF/67, que exigiam lei complementar, com o conceito ali estabelecido, para a definição de normas gerais, bem como a definição dos serviços.
Em segundo lugar, veja-se que, a EC 1/69, editada na vigência do AI-5, também veio com a exigência estampada na Constituição de 1967, ou seja, de que lei complementar estabelecesse normas gerais acerca de direito tributário e definição de serviços, bem como o conceito constitucional de lei complementar, que se refere à aprovação com maioria absoluta de votos.
Em terceiro lugar, ainda que a fundamentação tivesse sido o art. 2º, § 1º do AI-5, uma medida que afrontava todos os direitos e garantias fundamentais do cidadão, entendo que o STF, guardião supremo dos preceitos constitucionais de nosso país, não poderia recepcionar como constitucional, muito menos com o status de lei complementar, o DL 406/68, que veio após a edição do AI-5 e, por isso, no contexto da exacerbação do regime de exceção. Até, porque, por exemplo, a decisão de que a Constituição de 1988, recepcionou as normas funda
Assim, um exemplo prático daquilo que considero um equívoco do STF, em termos de constitucionalização do DL 406/68, refere-se ao tema deste trabalho, relativamente à tributação fixa das sociedades uniprofissionais, cuja decisão foi dada em 1999, por meio do julgamento do RE nº 236.604, com relatoria do Min. Carlos Velloso, de 26 de maio de 1999:
RECURSO EXTRAORDINÁRIO N. 236.604-7 PARANÁ:
EMENTA: CONSTITUCIONAL. TRIBUTÁRIO. ISS. SOCIEDADES PRESTADORAS DE SERVIÇOS PROFISSIONAIS. ADVOCACIA. D.L. 406/68, art. 9º, §§ 1º e 3º. C.F., art. 151, III, art. 150, II, art. 145, § 1º.
I – O art. 9º, §§ 1º e 3º, do DL. 406/68, que cuidam da base de cálculo do ISS, foram recebidos pela CF/88: CF/88, art. 146, III, a. Inocorrência de ofensa ao art. 151, III, art. 34, ADCT/88, art. 150, II e 145, § 1º, CF/88.
II.- R.E. não conhecido.
E, como complemento à decisão do RE, acima, temos a edição da Súmula 663, de 24 de setembro de 2003, do STF:
Os §§ 1º e 3º do art. 9º do DL 406/68 foram recebidos pela Constituição.
3. Conclusões
Nos termos do que foi discutido acima, parece-me claro que o DL 406/68 é inconstitucional, pelo menos no que se refere à regulamentação do ISSQN, tendo em vista a inexistência da constitucionalidade superveniente, no ordenamento jurídico pátrio.
E, como uma das consequencias diretas, de tudo que foi comentado, as demais leis que regularam, conjuntamente com o DL 406/68, o ISSQN, podemos raciocinar que todas, sem exceção, são inválidas ou ineficazes. Senão, vejamos:
a) DL 834/69
Entendo ser, também, inconstitucional, pelos mesmos motivos elencados para o DL 406/68, tendo em vista que regulou matéria prevista para lei complementar, conforme previa expressamente a CF/67 e, depois, a EC 1/69. Além disso, deu novas redações a dispositivos do DL 406/68, norma que, conforme demonstrado neste trabalho, é inconstitucional, o que torna o DL 834/69, também, ineficaz.
b) Leis complementares 22/74, 56/87 e 100/99
Entendo serem completamente ineficazes, tendo em vista que deram redação a dispositivos pertencentes ao DL 406/68, uma lei, como já demonstrado, ser inconstitucional, “morta”, desde sua edição; e
c) Lei Federal 7.192/84
Foi uma lei ordinária e, portanto, de pronto, inconstitucional, perante a Constituição de 1969, já que tratava de matéria reservada expressamente à lei complementar. Além disso, teve como motivação dar nova redação ao DL 406/68, quando ampliou a lista de serviços com a incidência do ISSQN e, portanto, também ineficaz.
Entendo que poderemos ter inúmeras conseqüências, com a consolidação do raciocínio aqui exposto, principalmente em cada caso em concreto, que ainda esteja por ser solucionado, tanto na área administrativa, como na área judicial, ou, mesmo para aquelas já solucionadas, nas duas áreas, mas que ainda haja tempo hábil para sua reversão.
E um exemplo bastante expressivo das consequencias diz respeito à tributação das sociedades uniprofissionais, implantada por meio do art. 9º, § 3º do DL 406/68, sistematicamente atualizado por meio do DL 834/69 e LC 56/87, pois eu entendo que, como nem as Constituições de 1967, 1969 e 1988 não poderiam ter recepcionado o DL 406, no que tange à regulamentação do ISSQN, como lei complementar.
Neste sentido, entendo que as disposições válidas, para o ISSQN, pelo menos até o advento da LC 116/03, são aquelas descritas no CTN, nos artigos 71, que estabelece o fato gerador, bem como as hipóteses de incidencia, 72, onde fica estabelecida a base de cálculo e 73, que define o contribuinte, que foram, conforme demonstrado neste trabalho, indevidamente revogados por meio do art. 13 daquele decreto-lei.
E, por fim, alguns poderiam ficar preocupados com o aspecto material da regra-matriz do imposto, entre a edição do CTN e a edição da LC 116/03, caso fosse decretada a inconstitucionalidade do DL 406 e tornadas ineficazes ou inconstitucionais, as demais normas que foram editadas posteriormente. Para essas pessoas, destaco o inciso VI do § 1º do art. 71 do CTN, verbis:
CTN:
Art. 71. (...)
(...)
§ 1º Para os efeitos dêste imposto considera-se serviço:
(...)
VI – demais formas de fornecimento de trabalho, com ou sem utilização de máquinas, ferramentas e veículos.
Veja-se que, analisando o dispositivo acima, podemos chegar às seguintes conclusões:
1º) em relação a situação levantada acima, relativamente aos demais serviços constantes nas Listas de Serviços fornecidas, originariamente pelo DL 406/68 e atualizadas até o advento da LC 100/99, isto é, o inciso VI, entendo abranger todos os demais serviços, não relacionados nos incisos I ao V;
2º) tomando como fundamento a primeira conclusão, a lista de serviços deixa de ser taxativa; e
3º) Como o artigo 71 não poderia ter sido revogado pelo DL 406/68, por tudo que já comentamos, e, por força das circunstâncias, também não foi revogado pela LC 116/03, o inciso VI, por não estar em desacordo com cada um dos serviços elencados na Lista de Serviços, Anexa a LC 116/03, entendo que estaria, em pleno vigor, produzindo seus efeitos na forma da primeira e segunda conclusões acima.
Notas:
[[1]]http://www.tributomunicipal.com.br/site/index.php/menuiss/artigos/275-sociedades-uniprofissionais-base-de-calculo-do-issqn
[[2]] http://www.fiscosoft.com.br/a/57b8/sociedades-uniprofissionais-base-de-calculo-do-issqn-geovane-basilio-da-silva
[[3]] “Art. 12. Compete aos Estados o imposto sobre operações relativas à circulação de mercadorias, realizadas por comerciantes, industriais e produtores.”
[[4]] Curso de direito tributário. 17 ed. – São Paulo: Saraiva, 2005, p. 197.
[[5]] Introdução ao estudo do direito: técnica, decisão, dominação. 2 ed. – São Paulo: Atlas, 1994, p. 215.
COMENTÁRIO DE OMAR AUGUSTO LEITE MELO: mais um excelente artigo escrito pelo Dr. Geovani, tributarista que nos honrou com sua presença no II Simpósio de Direito Tributário Municipal ocorrido em Campinas (2011). Quanto ao posicionamento defendido pelo autor, tenho entendimento diverso.
Sobre a inconstitucionalidade do DL 406/68, o artigo 2º, §1º do AI 5/1968 atribuiu plenos poderes legislativos ao Presidente (ver íntegra do AI 5: http://www1.folha.uol.com.br/folha/treinamento/hotsites/ai5/ai5/index.html ), para tratar de qualquer matéria, ainda que afeta à lei complementar. Logo, o DL 406/68 tem embasamento “constitucional” no Ato Institucional nº 5/1968, um “poder revolucionário” nascido em 1964 pelo AI nº 1.
No mais, entendo que deve prevalecer o entendimento já pacificado no âmbito do STJ em prol da vigência do artigo 9º, §3º do DL 406/68, mesmo após a LC 116/2003, na medida em que os diplomas modificadores (inclusive o DL 834/1969, que o criou) perdem sua “independência” ou identidade, na medida em que são incorporados a um texto, digamos assim, “principal”. Segundo o STJ, o §3º do artigo 9º do DL 406/68 possui independência ou identidade normativa própria. Ao “revogar” os diplomas meramente alteradores, o artigo 10 da LC 116/2003 foi ineficaz, não gerou nenhuma repercussão no dispositivo que prevê o ISS-fixo para as sociedades civis (simples).
Aliás, aproveitando o “gancho” neste entendimento pacificado pelo STJ, entendo que os §§4º a 6º do artigo 9ºdo DL 406/68 não foram revogados também; logo, ainda vigora aquela divisão (composição) de base de cálculo do ISS sobre os serviços “de pedágios”: redução da base de cálculo em 40% contra o Município onde não há posto de cobrança de pedágio, e o deslocamento desse montante para o Município que possua o posto de cobrança de pedágio. Portanto, aqui está uma excelente oportunidade de arrecadação do ISS para aqueles Municípios que possuem postos de cobrança de pedágios.