Esse projeto é originário do Senado Federal — seu autor é o senador Romero Jucá (PMDB-RR) — e, atualmente, está sendo examinado pela Comissão de Assuntos Econômicos (CAE), sob a relatoria do senador Armando Monteiro (PTB-PE). Em linhas gerais, o projeto promove alterações do seguinte teor:
i) inclusão de diversos novos “serviços” tributáveis (elaboração de programas de computador, computação em nuvem, provimento de acesso à internet, tratamento e purificação de água, veiculação e divulgação de textos, locação empresarial de bens móveis e imóveis, entre diversos outros);
ii) criação de instrumentos para prevenção da Guerra Fiscal, mediante a determinação de que, nos casos de concessão de benefício fiscal abaixo do limite de 2%, o município do estabelecimento tomador passará a ter competência para exigir o ISS devido; e
iii) revogação da regra de tributação fixa para sociedades profissionais, prevista no Decreto-lei 406/1968.
Em relação ao item “i”, acima, embora diversos “serviços” a serem incluídos sejam de constitucionalidade duvidosa e/ou estejam descritos de forma que propicie conflitos de competência com os Estados, abordaremos no presente artigo apenas os itens referentes à “locação empresarial de bens móveis e imóveis”
“Mas, essa questão já não foi decidida pelo STF?”, deve estar se perguntando o ilustre leitor.
Sim, desde 25 de maio de 2001, quando o Supremo julgou o Recurso Extraordinário 116.121, em sessão plenária, e adotou o entendimento de que, por não ter a locação a natureza de obrigação de fazer (e, sim, obrigação de dar), o imposto municipal não poderia incidir sobre o seu preço.
Apesar disso, o senador Romero Jucá pretende justificar a inclusão das referidas atividades entre as tributáveis pelo ISS sob o argumento de que, ao julgar outros REs (547.245-SC e 592.905-SC), o STF teria declarado o leasing financeiro e o lease back tributáveis pelo ISS, “em que pese não se inserirem no conceito de obrigação de fazer”. Além disso, consta da justificativa do projeto que “apenas para se evitar a tributação, pelo ISS, de atividades de locação não propriamente conduzidas com um caráter empresarial, propõe-se a previsão dos referidos subitens com a adjetivação “empresarial” às locações, para se excluir, de sua incidência, por exemplo, as locações feitas por pessoas físicas cujo rendimento principal não advenha dessas atividades.”
Tais argumentos não procedem. De fato, diferentemente do que consta da justificativa do PLS 386/2012, o entendimento de que o ISS somente pode incidir sobre obrigações de fazer não foi revisto por ocasião do julgamento dos REs 547.245-SC e 592.905-SC.
Como mencionado no artigo por mim publicado nesta coluna em 22 de maio de 2012 (Ausência de lei complementar impede ISS em leasing), o STF entendeu que o leasing financeiro e o lease back seriam tributáveis pelo ISS justamente por terem natureza de financiamento, que representa obrigação de fazer. Esse foi, inclusive, o elemento diferenciador que levou o tribunal a distinguir tais modalidades do leasing operacional, no qual prepondera a locação. Foi isso que levou o tribunal a declarar este último não sujeito à incidência do imposto.
Por outro lado, e agora as minhas ponderações se dirigem ao segundo argumento trazido pelo autor do referido projeto, não basta que determinada atividade seja exercida de forma empresarial para que ela esteja sujeita ao imposto municipal. É necessário que a atividade tenha a natureza de serviço (obrigação de fazer), o que não ocorre, como visto, na locação de bens móveis ou imóveis.
Em relação ao assunto abordado no item “ii”, acima, como sustentado no artigo de 14 de novembro de 2012 (Será que teremos mesmo paz na “guerra dos portos”?), não há dúvidas de que a guerra fiscal é um dos problemas centrais a serem enfrentados por quem quer que se proponha a fazer uma reforma tributária neste país.
Mas, há que prevalecer o bom senso. Não se pode atacar a guerra fiscal por meio de qualquer iniciativa que termine por prejudicar aquele que não é por ela responsável; no caso, o contribuinte.
Se, como pretende o projeto, a existência de benefício fiscal propiciar a cobrança do ISS por outro município, o contribuinte acabará, na qualidade de contribuinte de fato ou de direito, tendo que recolher o tributo a dois entes distintos: um, por valor reduzido, ao município em que estiver o prestador do serviço, e outro, por valor “cheio”, ao município do tomador. Esse resultado não é razoável e não pode prosperar.
Há que se adotar alternativa que puna o real infrator: o município que promove a guerra fiscal por meio da concessão de benefícios que não respeitem os limites fixados pela legislação aplicável.
Por fim, em relação ao item “iii” (tributação das sociedades profissionais), já tive oportunidade de abordá-lo no artigo que publiquei nesta coluna em 27 de junho de 2012 (Sociedades profissionais devem pagar ISS fixo).
A discussão desse tema parece infindável: se a forma como se dá a incidência do ISS nos serviços prestados por sociedades profissionais deve ser fixa, como pretendem essas sociedades, ou proporcional ao seu movimento econômico, como pretendem os municípios.
As autoridades governamentais já buscaram derrubar a referida forma de tributação por diferentes estratégias: i) questionamento da constitucionalidade do Decreto-lei 406/1968, porque não teria sido recepcionada pela Constituição de 1988, que expressamente veda as denominadas isenções heterônomas; ii) alegação de que tal norma teria sido revogada pela Lei Complementar 116/2003; iii) tentativas anteriores de revogar o dispositivo do Decreto-lei 406/1968 que prevê a referida forma de tributação (citamos, exemplificativamente, o PLP 183/2001). Nenhuma dessas tentativas prosperou.
Além da cobrança do ISS sobre movimento econômico ser inviável politicamente (as sociedades profissionais já são demasiadamente oneradas por incidências tributárias), as disposições do PLS 386/2012 acarretariam situação de absoluta inconstitucionalidade.
De fato, em sua redação original, o CTN estabeleceu uma ampla base de incidência para o ISS. O seu artigo 71, parágrafo 1º, inciso I, considerava sujeito à incidência do imposto o fornecimento de qualquer espécie de trabalho a usuários ou consumidores finais.
Todavia, para evitar a sobreposição de incidências, quando se tratasse de prestação de serviço sob a forma de trabalho pessoal do próprio contribuinte (autônomos), o imposto era calculado por meio de alíquotas fixas ou variáveis, em função da natureza do serviço e outros fatores pertinentes, não compreendida nestes a renda proveniente da remuneração do próprio trabalho (artigo 72 do CTN).
Sobre esse objetivo, o de evitar a sobreposição de incidências tributárias, Rubens Gomes de Sousa, relator do anteprojeto que se transformou na Lei 5.172/1966 (CTN), em parecer publicado na Revista de Direito Público 20, em 1972, intitulado “O Imposto sobre Serviços e as Sociedades Prestadoras de Serviços Técnicos Profissionais”, assim se manifestou:
5.1. O ISS foi instituído pela reforma tributária promulgada pela emenda n. 18, de 1º.12.1965, à Constituição de 1946 e complementada pelo Código Tributário Nacional (CTN), Lei nº 5.172, de 25.10.1966. A comissão, de que fui relator, que projetou a reforma, consignou expressamente que o ISS destinava-se a substituir o antigo imposto de indústrias e profissões, que, pela imprecisão constitucional de sua incidência e conseqüente indefinição de sua base de cálculo, se havia convertido no exemplo mais flagrante da inadequação da discriminação das competências tributárias de governos diferentes. Com efeito, os dois aspectos referidos permitiam que o imposto de indústrias e profissões viesse sobrepor-se a tributos reservados a outros poderes que não o Município, notadamente, no campo das atividades comerciais, ao IVC; e, nesse campo e também no das atividades profissionais de prestação de serviços, calculado como era, via de regra, sobre o chamado movimento econômico – equivalente à receita bruta – confundir-se com o imposto federal sobre a renda e proventos de qualquer natureza.
5.4. Guardando conformidade com a definição constitucional do ISS pela Emenda nº 18, de 1965, e visando a assegurar sua observância pelo legislador ordinário, o CTN, como lei complementar de normas gerais de direito tributário, elaborou para seu fato gerador um conceito integrado, embora subdividido em três itens, dos quais interessa ao presente parecer o que referia o fornecimento de trabalho, com ou sem utilização de máquinas ferramentas ou veículos (art. 71). (…) Paralelamente, o CTN fixou também, dentro da conceituação acima exposta do fato gerador, o seu elemento financeiro, ou seja, a base de cálculo do imposto, definindo-a como sendo o preço do serviço (art. 72). Mas, tendo em vista as premissas da própria instituição do ISS, estipulou que, tratando-se de prestação de serviço configurada pelo trabalho pessoal do contribuinte, o imposto seria calculado por alíquotas fixas ou variáveis, em função da natureza do serviço e de outros fatores pertinentes, ressalvado que entre esses últimos não se compreendia a renda proveniente da remuneração do próprio trabalho (art. 72, I). A finalidade da ressalva era, evidentemente, evitar que o ISS viesse a confundir-se com o imposto de renda sobre honorários ou salários, como acontecia com o antigo imposto de indústrias e profissões.” (Destacamos)
Como, nas sociedades profissionais, a responsabilidade dos sócios pelo exercício das respectivas atividades é pessoal, eles estão em situação equivalente à dos autônomos. Logo, em razão do princípio constitucional da isonomia, é mandatório que aquelas sociedades recebam tratamento tributário idêntico ao dispensado a esses contribuintes. Dispositivo que determine algo diverso estará eivado de inconstitucionalidade.
Em suma, há, de fato, diversas matérias que devem ser repensadas, ou, pelo menos, reguladas de forma mais clara no âmbito de incidência do ISS (exemplo disso é a tributação de reembolsos relativos a despesas de terceiros; a tributação das antecipações de pagamento, anteriores à prestação do serviço, fato gerador do imposto; a exata conceituação do que deve ser entendido como exportação de serviço; a forma como determinados conflitos de competência devem ser solucionados etc). Que o legislador complementar se concentre nessas reais questões, que merecem ser aprimoradas, e não em outras que, ou já foram decididas pelos nossos tribunais, ou representam efetivo retrocesso em relação ao cenário em que vivemos.
Gustavo Brigagão é sócio do escritório Ulhôa Canto Advogados, secretário-geral da Associação Brasileira de Direito Financeiro (ABDF), diretor do Centro de Estudos das Sociedades de Advogados (Cesa), presidente da Câmara Britânica do Rio de Janeiro e professor na Fundação Getulio Vargas.
Revista Consultor Jurídico
COMENTÁRIO DE OMAR AUGUSTO LEITE MELO: particularmente, compartilho destes mesmos entendimentos.