E tivemos o intuito de discutir isso notadamente com fiscais e procuradores municipais, bem como com contadores, empresários e advogados.
O apego à “lei” (lei complementar, lei ordinária) sempre foi (ainda é) muito forte, ainda mais para um servidor público, que reluta em aplicar decisões do STF ou do STJ quando ela não se refere a um caso em concreto.
A nossa Revista Eletrônica Tributo Municipal retrata bem esse nosso perfil, a nossa adesão ao “jurisprudencialismo”.
Aliás, no âmbito tributário federal, o artigo 19 da Lei nº 10.522/2002 “legalizou” a adoção da jurisprudência dominante do STF e do STJ, algo também recomendável para os estados e Municípios brasileiros. Segue o texto da referida lei federal:
“Art. 19. Fica a Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional autorizada a não contestar, a não interpor recurso ou a desistir do que tenha sido interposto, desde que inexista outro fundamento relevante, na hipótese de a decisão versar sobre: (Redação dada pela Lei nº 11.033, de 2004)
I - matérias de que trata o art. 18;
II - matérias que, em virtude de jurisprudência pacífica do Supremo Tribunal Federal, ou do Superior Tribunal de Justiça, sejam objeto de ato declaratório do Procurador-Geral da Fazenda Nacional, aprovado pelo Ministro de Estado da Fazenda.
§ 1o Nas matérias de que trata este artigo, o Procurador da Fazenda Nacional que atuar no feito deverá, expressamente, reconhecer a procedência do pedido, quando citado para apresentar resposta, hipótese em que não haverá condenação em honorários, ou manifestar o seu desinteresse em recorrer, quando intimado da decisão judicial. (Redação dada pela Lei nº 11.033, de 2004)
§ 2o A sentença, ocorrendo a hipótese do § 1o, não se subordinará ao duplo grau de jurisdição obrigatório.
§ 3o Encontrando-se o processo no Tribunal, poderá o relator da remessa negar-lhe seguimento, desde que, intimado o Procurador da Fazenda Nacional, haja manifestação de desinteresse.
§ 4o A Secretaria da Receita Federal não constituirá os créditos tributários relativos às matérias de que trata o inciso II do caput deste artigo. (Redação dada pela Lei nº 11.033, de 2004)
§ 5o Na hipótese de créditos tributários já constituídos, a autoridade lançadora deverá rever de ofício o lançamento, para efeito de alterar total ou parcialmente o crédito tributário, conforme o caso. (Redação dada pela Lei nº 11.033, de 2004)”
Acompanhando essa lei federal, elaboramos um projeto de lei similar para os Municípios, a saber:
“Art. 1º. Ficam dispensados a constituição de créditos da Fazenda Pública Municipal, a inscrição em Dívida Ativa, o ajuizamento da respectiva execução fiscal, bem assim cancelados o lançamento e a inscrição, relativamente às cobranças de créditos cuja ilegalidade ou inconstitucionalidade foi decretada judicialmente pelo Plenário do Supremo Tribunal Federal ou pelas Seções do Superior Tribunal de Justiça.
Parágrafo único. A dispensa tratada no caput pode ser reconhecida de ofício pela Administração Tributária e pela Procuradoria do Município, por meio de decisão fundamentada.
Art. 2º. O Secretário Municipal dos Negócios Jurídicos poderá expedir pareceres normativos relativamente às matérias já analisadas pela Procuradoria.
Art. 3º. A Procuradoria do Município fica autorizada a não contestar, a não interpor recurso ou a desistir do que tenha sido interposto, desde que inexista outro fundamento relevante, na hipótese de a decisão versar sobre matérias que, em virtude de jurisprudência pacífica do Supremo Tribunal Federal, ou do Superior Tribunal de Justiça, sejam objeto de pareceres normativos expedidos pelo Secretário Municipal dos Negócios Jurídicos.”
Na Exposição de Motivos dessa minuta de projeto de lei constam os seguintes dizeres:
“É com grande satisfação que remetemos a essa Casa de Leis projeto de lei que visa autorizar as Secretarias Municipais de Economia e Finanças e a dos Negócios Jurídicos a não aplicarem a legislação municipal quando a matéria tiver sido objeto de declaração de ilegalidade ou inconstitucionalidade perante o Supremo Tribunal Federal e Superior Tribunal de Justiça, assim como autoriza o Secretário Municipal dos Negócios Jurídicos a expedir pareceres normativos.
Com efeito, a medida se impõe em razão do clássico princípio da legalidade que norteia a Administração Pública que acaba pressionando o agente público a seguir a legislação municipal ainda quando haja decisões pacíficas dos tribunais superiores em contrário.
Por conseguinte, há cobranças levadas a cabo pelo Município cujo embasamento normativo destoa da jurisprudência, fazendo com que o Município corra o risco de ser compelido a pagar honorários advocatícios, custas processuais, além da perda de tempo com essas cobranças ilegais e inconstitucionais.
Enfim, os artigos 1º e 3º do presente projeto buscam moralizar e tornar mais eficiente a Administração Pública, encerrando as discussões administrativas e judiciais fadadas ao fracasso.
Por outro lado, o artigo 2º do projeto atribui poderes ao Secretário Municipal dos Negócios Jurídicos para expedir pareceres normativos no intuito de padronizar o entendimento jurídico dentro da Secretaria, além de servir como referência ou base normativa para as demais secretarias municipais. Com essa medida, procura-se uniformizar a interpretação dentro da Procuradoria, assim como acelerar os processos administrativos que passam por esse Órgão”.
Um recente artigo publicado na Revista Dialética de Direito Tributário nº 188, de maio/2011, de autoria do juiz federal Renato Lopes Becho, professor e doutor em Direito Tributário pela PUC/SP, intitulado “As alterações jurisprudenciais diante das fontes do Direito Tributário”, motivou-me a escrever esse artigo, que, na verdade, se resumirá à transcrição de parte dos ensinamentos ali consignados.
Há uma crise nas fontes do Direito Tributário!
Renato Lopes Becho cita o professor francês Michel Villey:
“Desconhecimento das fontes. Se perguntarmos, em primeiro lugar, de que fontes depende nossa ciência do direito, quem saberá responder?
Desde o início do século XX os modos de abordar o direito estão em incessante mutação. Os cursos de direito ministrados na faculdade foram inicialmente cursos de ‘códigos’; ensinavam-se os códigos e as leis; os estudantes eram adestrados para ‘subsumir’ ao texto das leis soluções particulares.
Depois, as decisões de jurisprudência foram consideradas como fontes de direito; com base numa mistura de sentenças e leis, construíram-se grossos tratados de ‘dogmática jurídica’.
Atualmente, a sociologia entrou em cena. Mais uma vez tomarei alguns exemplos dos programas da Universidade Paris II. Os cursos se intitulam: Direito penal e sociologia criminal – Direito Constitucional e instituições políticas – Ciência política – Relações internacionais (...).
Aprende-se a regular o direito com base nas instituições de fato, os hábitos, os costumes existentes”.
A partir dessa citação, Renato Becho considera que “o Direito Tributário brasileiro está passando por uma sensível transformação entre a primeira e a segunda parte da análise histórica feita pelo doutrinador. Estamos passando da fase da mera apresentação da legislação como solução jurídica para a ampliação da fonte do Direito, notadamente pela elevação da jurisprudência. Não nos parece que estejamos na fase sociológica pura e simples do Direito, apenas de haver esforços de instituições de fomento à ciência e à pesquisa estimulando a inter-relação entre o Direito e outros ramos do saber”.
Como defensor da jurisprudência como “fonte do Direito”, Renato Lopes Becho escreveu:
“A atividade judicial tem, portanto, essa função interpretativa e construtiva da norma jurídica. Ela permite, muitas vezes, a verificação até da mudança na compreensão de textos legais, pela atualização através do tempo, ainda que não haja alteração na redação. Nesse sentido é a lição de Eros Roberto Grau. A função interpretativa e construtiva da jurisprudência permite que uma lei com dezenas de anos, por exemplo, seja aplicada até hoje, em uma sociedade que evoluiu muito e guarda poucas marcas do passado. A atividade judicial também cria o Direito, quando o órgão julgador detecta uma lacuna no sistema legislativo e quando outra lei permite-lhe lançar mão da analogia, em que julgará por semelhança a outro caso regulado por uma norma válida”.
Outro ponto enfrentado pelo autor refere-se à hierarquia da jurisprudência:
“Assim como há hierarquia na legislação, também o há quanto à jurisprudência. No topo desta pirâmide encontra-se o Supremo Tribunal Federal, órgão máximo do Poder Judiciário no Brasil, abaixo do qual se encontram os outros tribunais superiores, como o Superior Tribunal de Justiça; descendo mais um degrau, têm-se os Tribunais Regionais Federais, os Tribunais de Justiça e os tribunais das justiças especializadas (do Trabalho, Eleitoral, Militar); no primeiro degrau estão os juízes singulares, federais e estaduais, especializados ou não”.
Os dois sistemas jurídicos (Common Law e Civil Law) também foram abordados no artigo:
“Nos países que adotaram o sistema denominado common law, capitaneados pela Inglaterra e seguido pelos povos por ela colonizados, acentua-se a força da jurisprudência sobre as demais fontes do Direito, apoiada pelos costumes. Na nação norte-americana, desgarrando-se parcialmente do sistema inglês puro, há uma crescente valorização da produção legislativa. Tanto assim que ela possui uma Constituição com mais de 200 anos de existência, ao contrário dos povos das Ilhas Britânicas. Estes não possuem uma Constituição escrita, mas um conjunto de leis de estatura constitucional.
Já na maioria dos povos ocidentais, descendentes da tradição romanística (nações latinas e germânicas), nota-se o primado da lei. Mesmo não sendo absoluta a força dessa fonte, o valor das leis é acentuado ante as outras fontes. Normalmente são países com constituição escrita e codificações ou consolidação de vários ramos do direito, como o nosso. Entretanto, jurisprudência continua ganhando terreno. Isso ocorre, inclusive, pela quantidade das leis, muitas vezes mal formuladas, deixando dúvidas, dando margem a interpretações antagônicas e mantendo lacunas que serão supridas pela atuação de juízes e tribunais”.
Neste mesmo sentido, tenho citado sempre o RMS nº 22.725, julgado pela 1ª Turma do STJ, relator Ministro Luiz Fux (hoje no STF):
“6. Submissão ao julgado da Excelsa Corte. A força da jurisprudência foi erigida como técnica de sumarização dos julgamentos dos Tribunais, de tal sorte que os Relatores dos apelos extremos, como soem ser o recurso extraordinário e o recurso especial, têm o poder de substituir o colegiado e negar seguimento às impugnações por motivo de mérito.
7. Deveras, a estratégia política-jurisdicional do precedente, mercê de timbrar a interpenetração dos sistemas do civil law e do common law, consubstancia técnica de aprimoramento da aplicação isonômica do Direito, por isso que para ‘casos iguais’, ‘soluções iguais’.
8. A real ideologia do sistema processual, à luz do princípio da efetividade processual, do qual emerge o reclamo da celeridade em todos os graus de Jurisdição, impõe que o STJ decida consoante o STF acerca da mesma questão, porquanto, do contrário, em razão de a Corte Suprema emitir a última palavra sobre o tema, decisão desconforme do STJ implicará o ônus de a parte novamente recorrer para obter o resultado que se conhece e que na sua natureza tem função uniformizadora e, a fortiori, erga omnes”.
Esse acórdão destaca o papel da uniformização da jurisprudência à luz do princípio da igualdade: “casos iguais, soluções iguais”.
A Profa. Regina Helena Costa, também citada no artigo, acata a importância da jurisprudência como fonte do Direito Tributário:
“Nos dias atuais, inegável o papel da jurisprudência como fonte do direito. Conquanto não ostente a mesma importância que apresenta nos países que adotam o sistema da common law, a jurisprudência tem ganho cada vez mais visibilidade, especialmente no campo tributário, à vista do elevado grau de litigiosidade existente nessa seara”.
Conforme sugere o título do artigo em análise, o Prof. Renato Lopes Becho buscou enfrentar especialmente no que tange às alterações jurisprudenciais em matéria tributária, valendo transcrever os seguintes trechos:
“Tomando o termo em um sentido alargado, podemos dizer que os legisladores mudam de opinião. Principalmente considerando como legislador uma entidade despersonalizada, podemos afirmar qu e o legislador muda de opinião quando, por exemplo, um projeto de lei não é aprovado em uma legislatura e é aprovado em outra. Generalizando, talvez possa ser considerado, nos termos abrangentes a que estamos nos referindo, que uma lei nova seja um mudança de opinião (ou poderíamos dizer decisão) do legislador. Até ontem ele não entendia como necessária ou útil uma lei, hoje ele aprova a nova legislação.Pronto, em termos amplos, ele mudou de opinião.
Pelas características da legislação, o que estamos chamando impropriamente como mudança de opinião (lei nova, alteração legislativa) do legislador foi amplamente regulado, especificamente pelo constituinte originário. Assim é com o princípio da irretroatividade da lei (CF, art. 5º, XXXVI: ‘a lei não prejudicará o direito adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada’), com a irretroatividade da lei tributária (CF, art. 150, III, a), e com o princípio da anterioridade tributária (CF, art. 150, III, b e c).
Sabemos que também a Administração Tributária tem interpretações, tem entendimentos. Por tê-los, também ela estará sujeita a mudanças de opinião. Quando isso ocorre, a Administração Tributária tem sua conduta ao menos minimamente regulada no Código Tributário Nacional, como se confere com o art. 146, que citamos:
‘A modificação introduzida, de ofício ou em conseqüência de decisão administrativa ou judicial, nos critérios jurídicos adotados pela autoridade administrativa no exercício do lançamento somente pode ser efetivada, em relação a um mesmo sujeito passivo, quanto a fato gerador ocorrido posteriormente à sua introdução’.
Há outros textos que poderíamos citar, como o art. 106 do CTN. Não o faremos, contudo. Cremos que o art. 146 é suficiente para nossos propósitos. Ele reconhece que a Administração Tributária pode mudar de opinião, até mesmo de ofício (sem provocação da parte contrária ou de outra autoridade), mas o legislador procurou regular, em alguma dimensão, os efeitos da mudança de entendimento administrativo.
Nesse quadro é interessante notar que não haja regulação para as mudanças jurisprudenciais. Deveria haver. Desconhecemos na Constituição comando que determine: a jurisprudência dos tribunais respeitará o direito adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada não apenas para as pessoas no processo em que forem exaradas, mas também para todos aqueles fatos submetidos aos tribunais em que se comprove que as partes agiram de acordo com a jurisprudência consolidada quando de sua ação”.
Portanto, o autor destaca que há normas tratando da mudança de opinião do “Legislativo” (artigos 5º, XXXVI; e 150, III, da Constituição Federal), e da própria Administração Tributária (artigo 146 do CTN). Mas não há nenhuma regulação expressa voltada para as mudanças havidas na jurisprudência. Agora, há um ponto em comum nesses dispositivos: todos resguardam os entendimentos até então existentes, afastando-se a retroatividade e, por outro lado, respeitando a segurança jurídica, a proteção da confiança e a boa-fé do sujeito que se pautou no entendimento até então consolidado.
Como deverá agir o Judiciário, quando estiver diante de uma mudança de jurisprudência, já que inexiste norma específica sobre o assunto?
Além da analogia (que não foi citada pelo autor), concordo plenamente com as conclusões feitas por Renato Lopes Becho:
“Estamos, com isso, afirmando que as decisões judiciais não são, apenas, individuais e concretas. Elas agem como elementos interpretativos, como textos gerais e abstratos, nos mesmos termos que as leis. Elas criam expectativas de direito. Se não pensarmos assim, não haverá nenhum problema em que, no ano de 2012, a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal seja toda ela em um sentido; que, no mesmo ano de 2012, um contribuinte haja, referendado por seu advogado, nos mesmos termos como considerado lícito pela jurisprudência do STF; e, em 2017, após mudança de entendimento da mesma Corte, o contribuinte perca uma ação porque agiu, em 2012, nos termos que o STF decidia em 2012, mas não como o STF decidia em 2016 (...)
Acolhemos o entendimento de que a jurisprudência é fonte do Direito, assim como a legislação, e que os precedentes jurisprudenciais criam expectativas de direito, assim como as leis.
Assim pensando, aderimos à conclusão de que os julgadores, notadamente os membros dos tribunais superiores, devem modular os efeitos de suas mudanças de julgamento. Eles podem tomar por base a decisão do constituinte quando este pensou na alteração legislativa (irretroatividade, proteção ao direito adquirido, ao ato jurídico perfeito e à coisa julgada); podem tomar como referência as decisões do legislador com a mudança de entendimento da Administração Tributária, adequando-se à dimensão da mudança jurisprudencial. Mas devem, sempre que alteraram a jurisprudência, pensar no jurisdicionado que seguiu a interpretação anteriormente dada”.
Enfim, a jurisprudência ainda merece ser melhor analisada por parte dos aplicadores do Direito Tributário, inclusive pelo próprio Judiciário. Na tributação municipal, vários são os assuntos que vão parar no Judiciário, sendo que o próprio STF tem oscilado em suas interpretações a respeito do próprio conceito de “serviço”, para fins de ISS, como visto no recente caso das fabricações de embalagens.