A prática de redirecionamento de cobrança de IPTU ganhou força com a crise gerada pela covid. Em 2021, a inadimplência do imposto na cidade de São Paulo foi de 13,44% (cerca de R$ 1,7 bilhão). Em 2020, chegou a 15% (cerca de R$ 1,9 bilhão). Nos quatro anos anteriores, a média foi de 12%, segundo a assessoria de imprensa da Secretaria Municipal da Fazenda. Em geral, no país, o IPTU corresponde de 2% a 3% do valor do imóvel.
O impacto dessas decisões para bancos e incorporadoras é gigantesco e milionário, segundo o advogado Bruno Sigaud, do Sigaud Advogados. Mas o problema se concentra em São Paulo. Em municípios como Belo Horizonte ou Florianópolis, há cobrança apenas quando o imóvel já está na propriedade do banco, embora ainda não houvesse a imissão na posse (os devedores ainda moram no imóvel). Nesse caso, segundo Sigaud, os Tribunais de Justiça de Minas Gerais (TJ-MG) e de Santa Catarina (TJ-SC) têm decisões favoráveis aos contribuintes.
As decisões do STJ marcam ainda uma reversão do entendimento do Tribunal de Justiça de São Paulo (TJ-SP). Até então, duas das três Câmaras de Direito Público da Corte paulista aceitavam o redirecionamento das cobranças. Além disso, os tribunais superiores que poderiam definir o mérito sobre o tema – o Supremo Tribunal Federal e o próprio STJ – diziam que não eram competentes para julgar a questão.
Na Justiça, a Prefeitura de São Paulo alega que os bancos e incorporadoras podem ser enquadrados como proprietários dos imóveis, mesmo nos casos em que não há retomada dos bens. Para eles, a responsabilidade está prevista no artigo 34 do Código Tributário Nacional (CTN). O dispositivo estabelece que “contribuinte do imposto é o proprietário do imóvel, o titular do seu domínio útil, ou o seu possuidor a qualquer título”.
A argumentação é contestada por bancos e incorporadoras. Eles defendem ter os imóveis apenas como garantia e posse indireta dos bens, o que não seria suficiente para caracterizá-los como contribuintes do IPTU. “O credor não detém os atributos mais típicos da propriedade, como direitos de usar, gozar e dispor do bem, nem tem interesse em se tornar efetivamente dono do imóvel”, diz Diogo Ferraz, do Freitas Leite Advogados.
No STJ, os julgamentos foram proferidos pela 1ª Turma por unanimidade. Ainda não há um posicionamento da 2ª Turma. Ambos os casos julgados envolvem o banco Itaú e o município de São Paulo (Resp nº 1886277 e Resp nº 1.796.224). O relator foi o ministro Gurgel de Faria.
No voto, Faria declarou que, ainda que exista a consolidação da propriedade no nome do credor fiduciário, a Lei nº 9.514, de 1997, determina não ser possível a manutenção dessa propriedade “mesmo nas hipóteses de inadimplemento do contrato pelo devedor fiduciante”. Ainda destacou que o credor fiduciário, “antes da consolidação da propriedade e da imissão na posse no imóvel objeto da alienação fiduciária, não pode ser considerado sujeito passivo do IPTU, uma vez que não se enquadra em nenhuma das hipóteses previstas no artigo 34 do CTN”.
Nesses termos, as decisões do STJ também são vistas por especialistas como importantes precedentes. Para Sigaud, com base nos recentes julgados, “todos os credores fiduciários poderão se defender em eventuais execuções fiscais sobre o assunto, com bom prognóstico de êxito”.
O advogado Diogo Ferraz também aponta que as decisões do STJ são coerentes com a jurisprudência da Corte, que condiciona a legitimidade passiva para a cobrança do IPTU à necessidade de que a pessoa detenha os atributos mais típicos da propriedade: os direitos de usar, gozar e dispor do bem. “O credor fiduciário não preenche esses requisitos nem tem interesse em se tornar efetivamente dono do imóvel”.
Ferraz destaca ainda que tais precedentes evitam que decisões divergentes de segunda instância se tornassem definitivas. Elas também indicam, segundo o advogado, que, agora, o STJ pode assumir o papel de dar uma solução uniforme a todos processos.
O advogado Cristiano Luzes, sócio do Serur Advogados, também ressalta que a responsabilidade do credor fiduciário está condicionada à efetiva posse sobre o bem. “Não é raro o credor esperar anos até a posse, em virtude de resistência imposta pelo devedor, de modo que não é justo que assuma as obrigações tributárias do imóvel”, diz.
O julgamento do tema no STJ, segundo Luzes, veio após definição, em abril de 2021, pelo STF, de que se trata de matéria com natureza infraconstitucional (RE 1.320.059/SP – Tema 1139). O advogado lembra ainda que, em junho de 2021, o TJ-SP encaminhou ao STJ o REsp 1.949.182 para afetação como recurso repetitivo. A relatora é a ministra Assusete Magalhães, da 2 ª Turma.
Apesar de ainda não existir decisão da 2ª Turma sobre o tema, o advogado afirma que já existem decisões monocráticas (apenas de um ministro), inclusive da ministra Assusete Magalhães, favoráveis aos contribuintes (Resp 1973383).
Procurada pelo Valor, a assessoria de imprensa da Secretaria Municipal da Fazenda de São Paulo informou, por meio de nota, que mantém sua interpretação de que seria possível a atribuição de responsabilidade tributária subsidiária ao credor fiduciário, na hipótese de inadimplemento do IPTU pelo devedor fiduciante.
Segundo a nota, “a instituição credora aufere benefícios econômicos da relação que resulta dessa posse indireta, na medida em que a alienação fiduciária é instrumento que encoraja o adimplemento do financiamento contratado”, diz. Deve, portanto, segundo a secretaria, “também por uma questão de capacidade contributiva e justiça fiscal, ser chamada a responder pelo IPTU devido, no caso de inadimplemento pelo devedor fiduciante”.
A assessoria do banco Itaú Unibanco também informou, em nota, que considera correta a decisão do STJ, pois reflete a realidade das operações discutidas. “Na qualidade de credor fiduciário, o banco não é responsável pelo pagamento do IPTU incidente sobre os imóveis que financia”, diz.